Opinião
Vasco Pulido Valente
«Saiu finalmente uma biografia de Salazar (a de Franco Nogueira era almanaque hagiográfico sem sentido ou valor). A biografia é de Filipe Ribeiro de Menezes, doutorado em Dublin e professor de uma universidade irlandesa. O que se nota. O livro, originalmente escrito em inglês, foi traduzido com zelo mas sem fluência. Uma pessoa tropeça quase linha a linha na sintaxe inglesa, na pontuação inglesa, na linguagem convencional da academia inglesa. De qualquer maneira, vale a pena ler esta longa e minuciosa história do homem que governou, sem sombra nem rival, gerações sobre gerações de portugueses e conseguiu criar uma cultura política que hoje ainda pesa - e pesa muito - na democracia que temos.
O próprio facto de Ribeiro de Menezes ser um "estrangeirado" ajuda a sentir isso.Para quem viveu sob Salazar - e já deve haver pouca gente -, o que falta nesta biografia é, naturalmente, a atmosfera do regime.
Porque não existia uma ditadura, existiam milhares. Cada um de nós sofria sob o seu tirano, ou colecção de tiranos, na maior impotência. A família, a escola, a universidade, o trabalho produziam automaticamente os seus pequenos "salazares", que, como o outro, exerciam um autoridade arbitrária e definitiva que ninguém se atrevia a questionar.
A deferência - se não o respeito - por quem mandava era universal; e essa educação na humildade (e muitas vezes no vexame) fazia um povo obediente, curvado, obsequioso, que se continua a ver por aí na sua vidinha, aplaudindo e louvando os poderes do dia e sempre partidário da "mão forte" que "mete a canalha na ordem".
Só num ponto, essencial, Salazar perdeu. Queria um país resignado à pobreza cristã e Portugal, se continua pobre, não se resigna agora à pobreza com facilidade e abandonou a Igreja.
Verdade que Salazar se esforçou para conservar a sociedade rural em que nascera e a Coimbra beata e conformista em que se educara.
Verdade também que durante 30 anos tornou Portugal uma grande aldeia, onde o "progresso" chegava, quando chegava (uma ponte, uma estrada, aqui e ali a electricidade), por dádiva do Altíssimo. Mas, depois da guerra, mesmo ele se viu obrigado, para sobreviver, a permitir que o mundo moderno passasse a fronteira, embora lentamente e por uma frincha. E o mundo moderno desorganizou o Portugal manso e miserável que ele com tanta devoção construíra. O preço que pagámos pela ditadura desse provinciano mesquinho é incalculável.»